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Rituais e foco em objetos: como funciona a mente autista que impulsionou doação de pratos na Internet

Após fake news se espalhar em Campo Grande, especialistas explicam como funcionam o TEA



Doação de prato a menino autista movimentou Internet e foi palco para fake news - (Foto: Reprodução)




Na terça-feira (14), o Jornal Midiamax abordou a respeito do movimento na Internet a procura por doação de pratos para uma criança autista que havia deixado de comer por ter quebrado o seu, em Araçatuba (SP). No entanto, o que começou como uma ação solidária, terminou em fake news. Vários perfis oportunistas do Brasil repercutiram o caso para benefício próprio e isso acendeu um alerta de golpe em Campo Grande, onde moradores também receberam as mensagens falsas no WhatsApp.

Após a viralização do episódio, muitos se questionaram do porquê a criança, em questão, só conseguia comer se fosse com determinado prato, marca e desenho. Como mencionado anteriormente, e confirmado pela Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) de Araçatuba, o menino é diagnosticado com autismo. Mas afinal, como funciona a mente de uma pessoa autista e por qual motivo existe essa preocupação com determinados objetos?

Primeiro de tudo, especialistas alertam que é fundamental que as pessoas entendam a grande complexidade envolvendo o TEA (Transtorno de Espectro Autista) e que nenhum indivíduo é afetado de uma única forma. Assim, o autismo é entendido, atualmente, como uma síndrome comportamental de nível complexo que combina fatores genéticos e ambientais.

Segundo o pediatra e neurologista infantil Clay Brites, geralmente os autistas apresentam divergências na interação, comunicação e no comportamento. “Há comportamentos marcados por estereotipias, como interesses não usuais em intensidade ou foco, movimentos motores repetitivos, rotinas invariavelmente rígidas e não funcionais, preocupação com partes de objetos, etc”, afirmou.

O mesmo é confirmado pela terapeuta ocupacional Tathyanne Sanches Orlando. Segundo a especialista, pessoas com autismo podem apresentar algumas características específicas, como manter pouco contato visual, ter dificuldade para falar ou expressar ideias e sentimentos e ficar desconfortável em meio a outras pessoas. Além disso, o autista pode ter comportamentos repetitivos, como ficar muito tempo sentado balançando o corpo para frente e para trás.

“É importante ressaltar que o autismo não é uma doença, mas sim um modo diferente de se expressar e reagir, que, apesar de não ter cura, não se agrava com o avanço da idade.  No entanto, quanto mais cedo for realizado o diagnóstico e iniciado o tratamento, melhores serão a qualidade de vida e a autonomia da pessoa”, afirma a terapeuta.

Assim, crianças com autismo podem apresentar algumas ações repetidas que são denominadas estereotipias, podendo ser motora, da fala, mexer com objetos, rituais de movimento, apertar partes do corpo, automutilação, entre outras ações. Há também os tipos que perseveram rotinas individuais nas crianças, como determinadas manias, compulsões, formas de agir sempre de forma previsível, independente do lugar, do contexto e dos momentos afetivos.

“Cada pessoa no espectro, seja ela criança ou adulto, tem características próprias e potenciais igualmente diferenciados que, quando desenvolvidos, permitem ao autista alcançar independência e autonomia em suas atividades diárias, bem como conviver em sociedade”, explica Tathyanne.

Autismo não tem receita

Carolina Espíndola Lopes Corrêa é jornalista especialista em pedagogia e análise do comportamento para autista, presidente da associação que defende os autistas e mãe de gêmeos diagnosticados com autismo aos 18 meses de idade. Ela disse ao Jornal Midiamax que os filhos, que completam 14 anos nesta quarta-feira (15), já passaram por várias situações parecidas com a do prato. Tanto é que um deles, o Thiago, esteve internado recentemente em São Paulo por sair da rotina de aulas escolares.

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Carolina e os filhos em Campo Grande (Foto: Arquivo Pessoal)

“Durante a pandemia, nós passamos por uma situação bem complicada porque ele tinha uma atividade de rotina que ele perdeu, ele ficou trancado em casa e começaram as autolesões, uso excessivo de eletrônicos e excesso de comida, aumentando, consequentemente, a medicação, o que levou o Thiago a uma internação”, recorda Carolina.

Por conta disso, recentemente a família tentou readaptar as atividades em casa, mas, por conta da rotina quebrada há quase dois anos, foi impossível o retorno até o momento. Assim, Carolina tenta adaptar o universo às funcionalidades dos filhos.

“No autismo não tem receita. Cada pessoa, familiar ou cuidador deve buscar profissional para auxiliar a não simbiose de atividades, pessoas ou objetos que eles têm ao longo do desenvolvimento. A rotina é importante, a comunicação é essencial, ainda que alternativamente seja por recursos diversos a fala, mas para que essas crises sejam evitadas”, afirma a jornalista.

Relembre: movimento da doação de prato

Uma fake news tem se espalhado nas redes sociais nos últimos dias. O que começou como uma boa ação terminou com uma chance para golpistas espalharem mentiras. A mensagem já rodou o Brasil inteiro e acendeu alerta em Campo Grande sobre o impacto da disseminação de desinformações.

Tudo começou quando um anúncio curioso foi divulgado no Twitter na última quinta-feira (9). A mensagem se tratava de um pedido de pratos antigos para uma criança autista, acostumada a comer só em um desses. Segundo o anúncio, o prato havia quebrado e o menor não queria mais comer em Araçatuba, interior de São Paulo.

As pessoas se mobilizaram rapidamente na Internet pedindo endereços de envio por DM dando dicas de como achar os pratos, até que o objetivo foi atingido. No entanto, surgiram suspeitas.

Moradores de Campo Grande também receberam as mensagens no celular e isso acendeu alerta de golpe na Capital. De acordo com a Apae de Campo Grande, a instituição não publica demandas dessa forma nas redes sociais. “Esse tipo de campanha normalmente não é feita pela Apae”, informou a assessoria de imprensa. Assim, é importante ficar atento(a) às iniciativas oficiais da instituição, que são divulgadas no site e redes sociais da Apae.

Esses e tantos outros exemplos mostram como as fake news assolam a população. Mas vale lembrar que o mesmo peso que carrega quem cria fake news, são aquelas que compartilham sem conferir informações. Fake news é uma via dupla de quem produz e de quem replica. Quando uma mentira amplamente disseminada ainda envolve a vida de uma família, fica o questionamento: onde as pessoas deixaram o respeito?

"Conhecer para compreender, acolher e desenvolver. Em se tratando do TEA, o conhecimento é uma das mais potentes armas que há para cuidar de quem está no espectro, reduzindo assim os desafios característicos do distúrbio e possibilitando ao autista uma melhor condição de vida, sem rótulos, sem estereótipos que possam limitar seu potencial enquanto ser humano", conclui a terapeuta.